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JORNALISMO CULTURAL OU COLUNISMO SOCIAL?

As fronteiras que separam o campo do colunismo social do jornalismo cultural, dois dos subgêneros jornalísticos de maior índice de leitura no mundo, nunca foram tão difusas no século 21. Se já não são claros para quem trabalha na área, quem dirá para o leitor. Seus efeitos, no entanto, são ainda mais difíceis de calcular na vida de um futuro artista. Tome, por exemplo, a capa da Veja São Paulo de maio deste ano: O primeiro solo de Lucas Jagger. Trata-se de uma matéria de jornalismo cultural musical que ganhou a capa de uma das revistas mais lidas do país, certo?

Nem tanto. O garoto ganhou a capa por ser filho de Mick Jagger, mas o efeito subsequente da matéria é concluir que, de fato, “filho de peixe, peixinho é”, quando a revista dá tantos holofotes ao primeiro contrato de um menino de 17 anos, que ainda não produziu nenhuma obra, mas ganha um espaço jornalístico que muitos artistas precisarão de quilômetros de estrada para alcançar. Se alcançarem. 

A matéria é avassaladoramente coluna social, ainda que não traga nenhuma grande revelação íntima do garoto (ainda bem). Fala do nascimento cercado de paparazzi, das idas a shows com amigos, do setlist preferido, uma palavrinha fugaz da mamãe, suas marcas preferidas etc. Mas, suavemente, vai levando a fofoca banal para o jornalismo cultural, ao mostrar que o rapaz vem se preparando, frequentando “aulas de guitarra, piano e teatro”, passou uma “temporada em Nova York para um curso de fotografia e edição na prestigiada Universidade Columbia”. E o contrato musical? Nada disso. Embora a capa diga “solo” e a chamada interna use “acordes”, era só brincadeira. O menino foi chamado para um primeiro trabalho (remunerado) para uma coleção de roupas da cidade de São Paulo. Um jornalismo cultural de moda timidozinho escondido num mundão de colunismo social. 

Mas alguém tem dúvidas de que, se Lucas quiser lançar um disco, uma grife própria ou um programa de TV, não faltarão candidatos, canais e patrocinadores? Talento pessoal? Pode ser, mas isso só o tempo dirá. As portas se abrirão, decerto, por chaves de ouro herdadas de gene, de berço. 

No entanto, sempre há um preço a se pagar. Enquanto o colunismo social abusa de filhos de famosos para aumentar seu índice de leitura, em algum ponto o jornalismo cultural vai atrelar, quase sempre, o nome do menino à estrela original, o papai Jagger. E o mundo está cheio de artistas que se irritam profundamente com essas associações. 

A lógica por trás disso é simples: o jornalismo precisa de audiência para sobreviver. Veículos tradicionais possuem portas abertas com celebridades. É natural juntar as pontas e aproveitar o sinal verde de um menino que, até ontem, era protegido pela mãe dos holofotes sociais para, agora, estampar a capa. Em troca de muita fofoca velha sobre ele, a revista o presenteia com um talento – musical ou de moda, tanto faz – previsto, premeditado e antecipado. 

Mas nem todo filho de famoso gosta desse tipo de exposição. Maria Rita, por exemplo, preparou-se por muito tempo antes de se lançar no mundo musical e tomou diversos cuidados para não ter sua imagem associada à mãe ilustre, Elis Regina. Irritava jornalistas – especialmente os colunistas sociais – ao se recusar a falar da mãe, de sua influência artística etc. Demorou anos para fazer homenagens a ela, mas, ainda hoje, quase 15 anos de seu primeiro disco, Maria Rita pouco fala da mãe. A estratégia deu certo. Aos poucos, a curiosidade do público se voltou, mais, para seu talento na voz, composição e performance, ainda que hajam assombrosas semelhanças com Elis. Mas Maria Rita tem, hoje, vida própria no jornalismo cultural, críticas que analisam suas obras sem necessariamente falar da mãe famosa.

Em qualquer subárea do jornalismo cultural, elementos de colunismo social contaminam, habitualmente, a cobertura. Não basta falar da letra, dos acordes ou da performance do artista ou da banda, é preciso dizer do que gostam de comer, com quem dormem ou o que vestem. O escritor famoso por romances melosos se separa da esposa e ganha espaços mais generosos nos cadernos de cultura que muitos de seus best-sellers. O apresentador de TV “adianta as gravações para sair de férias com a família”. O diretor de cinema que abre as portas de sua casa para mostrar sua coleção de obras de arte. O artista plástico brasileiro que não sai das revistas e jornais, não por conta de novas obras ou críticas aprofundadas sobre seu estilo, mas, sim, por causa da nova celebridade de Hollywood fotografada ao seu lado. E a peça de teatro que ganha um “plim-plim” da sua “patrocinadora cultural”, desde que a peça tenha algum famoso de coluna social global. 

Se nem sempre ocorre a transferência de talento artístico de pai e mãe para filho ou filha, é quase certo de que haverá a herança da fama e, com ela, a nova geração pode se empreitar pelos mesmos caminhos dos progenitores. Pequenas variações são mais recomendadas. Estampando colunas sociais por anos e anos, ao lado do pai, um dos maiores cantores do país, uma filha pode ganhar rapidamente o pódio de cantora/apresentadora, enquanto outra decide virar culinarista das mais lidas, assistidas e ouvidas do País. Pronto. Trilhou o próprio caminho, ainda que já pavimentado.

Neste universo tão entrelaçado do jornalismo cultural – com suas reportagens, críticas e notas – com o colunismo social, vale sempre lembrar do pensamento do sociólogo francês Edgar Morin, ao dizer que “esses olimpianos não são apenas os astros, mas também os campeões, príncipes, reis, playboys, exploradores, artistas célebres, Picasso, Cocteau, Dalí, Sagan. […] Margaret e B.B., Soraya e Liz Taylor, a princesa e a estrela se encontram no Olimpo da notícia dos jornais dos coquetéis, recepções, Capri, Canárias e outras moradas encantadas. A informação transforma esses olimpos em vedetes da atualidade. Ela eleva à dignidade de acontecimentos históricos acontecimentos destituídos de qualquer significação política, como as ligações de Soraya e Margaret, os casamentos ou divórcios de Marilyn Monroe e Liz Taylor, os partos de Gina Lollobrigida, Brigitte Bardot, Farah Diba ou Elizabeth da Inglaterra”.

Se as roupas que um menino de 17 anos ainda vai desenhar para uma grife é, de fato, um acontecimento destituído de qualquer valor histórico – e jornalístico – ele é um bom negócio para os dois lados: mais leitores e curtidas para a imprensa e portas abertas em qualquer campo da arte que o filho famoso quiser entrar. Mas existe um terceiro lado desta equação. E é ele que deve se perguntar que benefícios recebe desta mistura de coluna social com jornalismo cultural. Afinal, o que você, leitor, ganha com isso? 

Franthiesco Ballerini é jornalista, autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’