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CRÍTICO X CRITICADO: O EMBATE CLÁSSICO DO JORNALISMO CULTURAL
No final de 2018, voltou em cena na imprensa a antiga queda de braço que existe desde que Gutenberg inventou a prensa móvel. De um lado, o crítico, de outro, o criticado. E no meio, o produto cultural, especificamente o filme Magal e os Formigas, dirigido por Newton Cannito e Michael Ruman. A Folha de S.Paulo publicou uma crítica, assinada por Naief Haddad, que gerou uma réplica de Cannito e uma tréplica de Haddad. Afinal, quem tem razão neste confronto de argumentos?
Bem, primeiramente, se houver argumentos, já é ponto positivo. Pois não há nada mais falho numa crítica de arte do que adjetivação sem argumentação. O crítico de música que chama a banda de monocórdica sem desenvolver a ideia falando da melodia, da trajetória musical, dos instrumentos etc. O crítico de cinema que esculacha a atuação do protagonista sem dar ao leitor argumentos envolvendo interpretação, repertório e contexto da carreira do artista. O crítico literário que exalta com adjetivos elogiosos o novo livro da saga do momento sem permitir seu leitor entender onde se encontra o êxito da obra, se na construção dos personagens, na escrita, na originalidade da ideia, e sem citar sequer um trecho que ele considerou “genial”.
Quando a crítica opina ser argumentar, ela está pedindo para o leitor acreditar meramente na palavra do crítico ou na autoridade do veículo que o publica. E nada mais. É como ir a uma loja comprar um produto única e exclusivamente porque o lojista disse que é ótimo, sem ver, tocar ou pesquisar sobre o produto antes. E vez ou outra, quando a crítica faz isso, ela gera pedidos de respostas dos autores da obra criticada. Mas foi isso que ocorreu no embate da Folha?
Naief Haddad passa praticamente todo seu diminuto espaço de crítica analisando apenas a evolução narrativa, como se um filme fosse bom ou ruim só por isso, e não por direção de arte, direção de fotografia, som, atuação, efeitos especiais etc. Aliás, trata-se de um grande mal da crítica contemporânea, em parte por forte influência da linguagem hollywoodiana, mas isso é assunto pra outro texto.
Em um determinado ponto, Haddad diz que “as piadas são ruins”, mas não se dá ao trabalho de exemplificar, de argumentar. E isso é bem diferente de dar spoiler. Depois, diz que “talvez o longa só queira agradar aos fãs de Magal, o que é legítimo”. Além de não fazer pontes bem estruturadas entre o que disse antes e este pensamento solto, denota-se ou uma ironia ou uma falta de conhecimento sobre as engrenagens de construção de roteiro e trabalho de direção num país que precisa de incentivo fiscal para fazer cinema e, portanto, não possa se dar ao luxo de fazer um filme apenas para fãs de alguém, ao menos que esse alguém tenha pago a obra, o que deve ser analisado pelo jornalista ou crítico. Depois, diz que Magal “surge como uma caricatura de si mesmo”. Por quê? Não seria essa a intenção? Opinião solta, novamente. Se a obra é realmente ruim, o crítico perdeu a oportunidade “colocar a obra em crise”, como bem dizia Jean-Claude Bernardet.
Na réplica, Cannito começa provocando o crítico e a abertura de seu texto com a pergunta “para que serve a crítica?”. Diz que a crítica profissional deve “ir além do gosto pessoal. Caso contrário, é apenas um pitaco de amador”. Certíssimo. Se Haddad é crítico profissional, ele perdeu a oportunidade de se mostrar como tal, que além de argumentar e exemplificar o que diz, deveria também colocar o filme no contexto das produções nacionais, cuja caricaturização é recorrente desde antes da Chanchada. Mas aí Cannito cita que outro crítico fez parentesco de seu filme com Ettore Scola de Feios, Sujos e Malvados (1976). E depois diz que Naief escreveu uma “crítica de autor que ignora o público”. O que é “crítica de autor”? Cannito, aqui, peca com o mesmo erro do crítico: conceito sem contexto, tiro sem justificativa. E desde quando ignorar o público é um erro da crítica? O foco do crítico é a obra, é colocá-la em discussão, em confronto consigo própria, com o restante das obras, com suas mensagens e contradições. Quem tem que se preocupar com o público é o cineasta, não o crítico. Crítico que se preocupa com o público me soa suspeito, mais ligado ao departamento comercial do que da redação do jornal.
Por fim, Cannito diz que “muitos críticos bons escreveram sobre o filme e perceberam como ele tropicaliza a comédia italiana e insere elementos de humor nonsense”. Agora é o produto sendo mostrado sem a cara do lojista (que críticos?). Além disso, passa a impressão de que crítico que fala fez uma boa crítica. E termina dizendo que “foi apenas a opinião de Naief que determinou a pontuação do filme no ‘Guia da Folha’. Um desserviço aos leitores deste jornal”. O problema não foi uma voz isolada pontuando um filme – ainda que pontuar obra de arte seja ridículo, parece coisa de escola, como disse certa vez Cao Hamburger no Estadão. O problema é uma voz que opina como leigo, pois peca pela falta de argumentação.
A tréplica de Naief corrige aquilo que ele não fez na crítica: contexto, reflexão, não um disparo gratuito de uma opinião sem fundamentação. Mas logo depois ele diz que “o que se discute (ou deixa de se discutir) na concepção do longa só faz sentido se está evidente na exibição”. Para quem, Naief Haddad? Para o crítico ou para o espectador? Me parece que você jogou ambos no mesmo saco. O espectador encara o filme como lazer, portanto, se é chato, ele não precisa ir além de sua simples adjetivação. Já o crítico encara o filme como trabalho e há incontáveis longas-metragens cujo sentido não estava evidente na exibição e que foi preciso um olhar apurado do crítico para ver a grandeza da obra emergir aos poucos (A Regra do Jogo, de Jean Renoir; Limite, de Mário Peixoto; Hiroshima meu Amor, de Alain Resnais etc.).
Naief encerra dizendo que “o filme dá sua resposta na tela, não por meio do que diz o diretor”, sugerindo, talvez, que um hipotético fracasso de bilheteria fosse a “resposta” de que o crítico estava certo, uma vez que a tréplica veio semanas após a estreia. Insinua um pensamento, sem ser transparente com ele. Mas talvez se ele fosse transparente, seria ainda pior. Afinal, dizer que um filme brasileiro é bom porque foi bem sucedido nas telas é mostrar um profundo desconhecimento das engrenagens que giram a enferrujada roda do cinema nacional. E ainda diz que “o ‘Magal’ imaginado por Cannito em seu ‘projeto’ seja bem melhor que aquele que, de fato, se vê no cinema”. Nisso ele está certo. Mas Cannito não está sozinho. Yasujiro Ozu, Luís Buñuel e Alfred Hitchcock viviam lamentando que, do trajeto do roteiro para as telas, perdia-se grande parte da ideia original de um filme. Assim é o cinema.
Texto de Franthiesco Ballerini